
Tenho por mania excêntrica perambular pelo cemitério, examinando esta e aquela lápide, calculando conforme as datas ali impressas, com que idade aquele alguém faleceu. Era um cemitério cristão, com cruzes dos mais variados tipos e tamanhos, porém quase todas medíocres, sem esmero algum. O cemitério em si era medíocre, sem essa suntuosidade literária, com túmulos sem reboco ou mesmo lápide e outros até destruídos, com o caixão ou os restos mortais à mostra.
Exatamente num desses túmulos depredados pelo tempo (ou melhor dizendo, numa cova cimentada, já que não há ali indícios de ter havido de fato um túmulo), vejo aquilo que outrora fora um ser, todo espalhado ele em suas formas calcárias. Mas não é essa profanação que me chama a atenção, e sim o fato de ser de uma moça muito jovem que ali tão vulgarmente jaz. Tudo isso inferira duma placa incrustada numa cruz, ambas de metal, que resistira em parte ao decorrer de mais de um século, um tanto embaçada e desgastado quase todo seu nome, porém de todo legível sua data de nascimento e óbito, que mostraram-me ser de uma velha senhora hoje, porém, que partira em tenra idade duma jovem de quinze anos ― Elizabeth; se chamava Elizabeth de alguma coisa B..
Não há mais nada além dessa cruz e placa, ossos e concreto em ruínas, mas me vem à mente a frase: “O sangue me manterá jovem e bela para sempre” ― que, pra meu espanto, fora dita (coincidentemente?), pela condesa homônima Báthory. Me apiedo daquela pobre alma tão precocemente furtada, e faço meu pelo sinal.
Com isto na cabeça e com desconforto no estômago causado pelo excesso de tempero do meu almoço ― um bife acebolado e macarrão a alho e óleo ―, resolvo me sentar num desses soturnos bancos que se encontram nesse tétrico local, e fico a divagar coisas sobre essa moça. Imerso em meus mais profundos pensamentos, distraído de todo o resto, escuto, vagamente, uma voz a me cumprimentar ― vem de uma mulher que se sentara sem que me desse por isso ― cumprimento depois de alguns instantes, desperto da minha abstração: Boa tarde ― respondo polidamente, a acenar-lhe a cabeça, de soslaio, tentando visualizar e decifrar aquela esfinge que ali se está.
Reparo de relance aquela figura desconhecida que intrigavelmente comporta a velhice e a juventude, de um olhar de escárnio e lúgubre, os cabelos da mais pura prata, ausente de simpatia, com um semblante taciturno, mas vívidas me parecem suas cores, que lhe garantem mais ainda um insolúvel mistério, com os olhos que me parecem amarelos fitos no horizonte além dos túmulos, além da vida.
Vou fazendo essas e mais conjecturas acerca de sua pessoa, quando esta, abruptamente me indaga se bebo qualquer coisa que me tire a lucidez e me dê prazer ― posso perceber melhor sua voz, é de um tom austero e grave, gutural como se advinda dos Ínferos, mas incrivelmente, horrivelmente maviosa ― respondo negativamente, dizendo que a vida já é por demais inebriante e que, aquele que por ventura embebe seu cérebro, corre o risco de se perder, deparado com a embriaguez da vida, em loucura.
Ela continuou séria, impassível, na mesma posição altiva que se mantivera, engolindo e digerindo minhas palavras. Ela volta-se pra mim, pronta a dizer algo quando quase que, simultaneamente, me viro pra ela e a intercalo, lhe perguntando o mesmo ― Via agora com a mais infernal lucidez seu rosto, pálido, lívido como se fosse desprovido de sangue mas não de vida, seus olhos eram (agora podia realmente os ver), gélidos de um azul quase tão alvo como sua tez, cabelos à moda platinada; cadavérica, com a alma ausente, mas linda, jovialmente, diabolicamente linda e vivaz. Sim, vivaz, quando enfim se desfez daquela morbidez e riu um riso tímido, baixando seus olhos que parecem querer me furtar a alma, languidamente, quando eu, de ímpeto, me assusto com toda aquela aparência funérea que me ali se instava. Pareceu adivinhar meus pensamentos e me disse gracejando que não me pretendia tomar o espírito… ― por enquanto. Faço um muxoxo, me desculpando meio sem graça, já recomposto do meu vexame.
Sangue ― me responde ela, calma e naturalmente, já refeita em sua sibérica feição e posição. Não entendo de pronto aquele vago e sinistro vocábulo, mas atino depois da pergunta que a fizera, e, estremeço, ante a sua resposta.
Seus olhos mais ainda compenetram na imensidão cerúlea, como se deles embebesse, com o cenho franzido e a mover os cantos da boca e de leve os morder, como se ruminasse seus pensamentos. Ficou um bom tempo se alimentando deles, comigo ali ao seu lado, arqueado com os cotovelos nos joelhos e as mãos cruzadas frente a boca, atônito, com os olhos a olharem distraídos e pavorosos para baixo, ainda mais intrigado do que antes. Me disponho a ir embora, aterrado, isto é, cogito ir (tivesse ido embora; tapado os ouvidos, fechado os olhos e, ai, Deus, fugido pra bem longe daquela faceta de Lilith), quando súbitamente ela se vira para mim e me pergunta, maliciosa:
― Você teme a paixão ou a morte?
Meus olhos se arregalam, minha medula óssea eletrifica-se, meu corpo todo se arrepia de um medo instintivo e irracional ― ela percebe isso e sorri, malignamente, discretamente ― ; tento erguer de todo minha cabeça, tonteio e vacilo, branco como a neve que se apodera do meu ser. Hesito um pouco, ensaio algumas palavras, mas a fala me falta, reduzindo-se a murmúrios indecifráveis. Aos poucos o sangue me retorna às faces e me devolve uma tênue força, suficiente para ajeitar minha posição, ereta, e lhe responder, não ousando a encarar aquela sombria criatura, não ainda dissipado o terror me causado pela pergunta e, principalmente, por quem a fizera:
― Nem… a uma… Nem… a outra… ― digo, com a voz embargada e trêmula, cadavérica, mas depois mais firme e vívida ―
A paixão se tiver que vir que venha, desassossegada em mim sossegado ― digo com imenso desassossego no peito ― Não temo-a! Sua loucura não tomará de todo minha lucidez ― aqui já tomado de medo e à beira da total loucura. Tudo tem o seu valor e um gosto doce quando dela se consegue extrair ― estava deprimido e com um terrível amargor na boca.
― No que tange a morte ― “memento mori“. Por que temer aquilo que tão certo nos é? ― eu temo, gela-me o espírito; intuo que me é chegada a hora do mergulho nas sombras do Desconhecido e, que, não seria tão simples e rápido como suponho ― A morte é tão certa quanto o passar das horas pelos ponteiros do relógio, ainda mesmo que estes já não andem, pois o tempo passa, indiferente a tudo e a todos, e as arrasta pelos seu 24 braços para os pés da nossa sepultura ― calmamente completo meu pensamento ― não sem ter dito essa última palavra com um mau anseio e um nó na garganta ―, de maneira vaga, perdido nele, reticente e já resignando a meu fatídico fado.
Assim fico um bom tempo,sonhando uma boa morte e até me rindo das coisas boas que eu pude aproveitar até aqui. Já aceitava o fim e mergulhava de cabeça no Abismo da Morte, feliz com ela. Mas, a realidade desconhece nossos sonhos; quando não os ignora ― Estava desperto do meu sonho e atirado abruptamente à realidade, para ser jogado e tragado pelo meu mais hediondo pesadelo.
― Interesante ― me disse, depois de ouvir-me com a mais absoluta atenção e tranquilidade angélica, com um enorme e demoníaco sorrisso, com as chamas do próprio Inferno frementes nos olhos, e me deu ― para meu completo espanto, pra não dizer pavor ― um possuído e longo beijo…
Sinto minhas forças se esvaírem, sinto meu espírito ser sugado. Tenho ímpeto de fugir. Tenho asco de lhe virar o rosto e cuspir fora seu veneno. Mas qual, me paralisara todo o corpo. Não havia qualquer razão que justificasse um beijo; nem uma palavra dita lasciva e ambiguamente, nem um olhar mais ousado e férvido, nem uma demonstração de afeto! Nada! Ou havia? Sei que havia (como me ainda há), um receio asqueroso, um medo hediondo e repulsa inefáveis.
Tremo de frio, embora o calor do sol seja ameno, e queimo, embora minha pele esteja álgida. Há não sei o quê de acre, a me amargar a boca e me queimar a garganta e ali ficar, a me causar ânsia de vomitar todo aquele nojo. Me desespero; levando minhas mãos ao pescoço tento me estrangular; o ar me vai faltando… Já não sinto sua boca como não sinto a minha. O riso da loucura se estampa em minha face; um riso de princípio débil, depois, rapidamente estridente e convulso. O fel descera, fora digerido. Estou possuído.
Não meus caros amigos, eu já não sou mais o que eu supus ser eu. Estou dominado. A caça sede às presas do caçador vendo que é embalde lutar. O Céus! quão abominável certeza eu tenho que loucamente desejo essa criatura dos Infernos ― mas qual! (sinto uma dor latejante em meu pescoço, com um líquido viscoso e quente a escorrer dele, me tirando, lenta e dolorosamente, todos os meus sentidos e a minha vida) ― ela se fora com minha anima, de volta ao seu castelo transilvânico.